Das Palavras dos Espíritos às Imagens dos Homens: representações visuais da vida espiritual
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Relatos espirituais chegam até nós desde os primórdios da civilização. Para se tornarem experiência compartilhável, precisam ganhar forma: imagens, sons, espaços, ritmos narrativos. Essa “tradução” não é falha da comunicação — é o próprio meio pelo qual o invisível atravessa a cultura.
Allan Kardec propôs o Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE), método que busca a concordância de mensagens sérias obtidas por médiuns diferentes em lugares distintos. Esse critério ajuda a distinguir conteúdo (o que se repete com coerência) de forma (os modos culturais de representar).
Sob essa chave, podemos analisar como diferentes artes moldam o que é narrado pela espiritualidade — mantendo o núcleo doutrinário, mas variando a plástica: ora arquiteturas, ora paisagens; ora estúdios, ora locações naturais; ora palavras, ora efeitos digitais.
Arte antiga como ponte para o invisível
Os monumentos erguidos em diversas partes do planeta — das pirâmides do Egito às da Mesoamérica, dos zigurates da Mesopotâmia aos templos da Ásia — expressam não apenas poder político, mas sobretudo uma visão espiritual de continuidade da vida.
Muitas dessas manifestações, embora separadas por oceanos e séculos, apresentam semelhanças arquitetônicas e simbólicas: formas piramidais, alinhamentos com astros, motivos que remetem à ascensão, ao sol e ao ciclo da morte e renascimento.
Essas convergências sugerem uma origem comum nas intuições espirituais da Humanidade, em que povos distintos recorreram à arte, à arquitetura e ao mito para traduzir experiências transcendentes em matéria duradoura.
Assim, a arte sempre funcionou como ponte entre o visível e o espiritual, papel que o Espiritismo retoma e atualiza em novas linguagens culturais.
André Luiz e a inspiração para a arte popular
Os conceitos trazidos por André Luiz em obras como “Nosso Lar” e “E a Vida Continua…” inauguraram no movimento espírita brasileiro um campo fértil de reflexões sobre a vida no plano espiritual.
Embora Kardec nunca tenha mencionado diretamente “cidades espirituais”, muitos desses relatos foram confirmados ou complementados por outros autores, compondo um quadro coerente sobre a dinâmica da vida após a morte. Não demorou para que tais descrições transbordassem para a arte brasileira, inspirando adaptações em diferentes linguagens.
Televisão: “A Viagem” (1975 e 1994)
A primeira versão de “A Viagem” (Rede Tupi, 1975) dramatizou o pós-morte inspirado em André Luiz. A novela apresentou ambiências distintas: o “vale”, com seus cenários sombrios e cavernosos, e a “colônia”, com interiores semelhantes aos da Terra. Trechos preservados e parcialmente restaurados no Arquivo Nacional (disponíveis no YouTube) permitem observar as escolhas de fotografia e cenografia, mesmo diante das limitações técnicas da época.
O remake de 1994, novamente sob o escrito por Ivani Ribeiro e dirigido por Wolf Maya, fez uma opção estética diferente: evitou o astral de estúdio e ambientou o Nosso Lar em meio à natureza, com lagos, árvores e animais. As gravações foram realizadas em um campo de golfe em Nogueira (Petrópolis), enquanto o Vale dos Suicidas foi retratado em uma pedreira desativada em Niterói.
A novela também incorporou referências visuais da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, inspiradas nas gravuras de Gustave Doré, especialmente para retratar o sofrimento dos espíritos no vale.
A primeira versão contou com consultoria de José Herculano Pires, resultando inclusive em um livro homônimo assinado por ele e Ivani Ribeiro — caso raro em que a teledramaturgia se associa a uma reflexão filosófica/doutrinária.
Em termos de impacto, “A Viagem” (1994) tornou-se um dos maiores vetores de popularização do Espiritismo no país, alcançando sua sexta reprise em 2025, três delas em TV aberta. Esse fôlego cultural demonstra como uma estética televisiva pode fixar memórias coletivas, sem pretender ser “fotografia” do plano espiritual.
Cinema: do desenho mediúnico ao CGI
O cinema ampliou essa tradução visual. O filme “Nosso Lar” (2010) partiu dos desenhos mediúnicos de Heigorina Cunha — mapas, fachadas e ministérios observados em desdobramento e validados por Chico Xavier — e os transformou em cenografia com apoio massivo de efeitos digitais (cerca de 90% das cenas). Uma imagem mediúnica tornou-se, assim, design de produção.
O sucesso foi estrondoso e deu origem a “Nosso Lar 2: Os Mensageiros” (2024), que deslocou o foco para missões na Terra, com cenas menos monumentalistas e mais voltadas às passagens entre planos. A mensagem permanece a mesma: não existe uma estética única do espiritual. Cada obra seleciona metáforas visuais adequadas à sua narrativa.
Outras expressões artísticas
Os quadrinhos também desempenham papel importante, oferecendo um “meio-termo” entre literatura e cinema. Um exemplo é o projeto em HQ “Um Jovem no Além”, inspirado na trajetória de Luiz Sérgio, publicado em O Trevo.
Com linguagem acessível, a obra cria uma visualidade pedagógica voltada para a juventude, reafirmando conteúdos recorrentes: continuidade da vida, aprendizado no além e ética do consolo.
Método de leitura: separar conteúdo de forma
As obras artísticas são vertentes de difusão do Espiritismo, mas sua apreciação exige ponderação. Confundir metáforas visuais com realidade ontológica leva a falsos debates (“o céu é um campo?” “há muralhas literais?”).
O método kardecista nos convida a honrar o conteúdo validado e apreciar a criatividade encarnada como ponte didática. Em outras palavras: as imagens são nossas — criadas para sentir e compreender aquilo que os Espíritos transmitem em essência.
Thiago Rodrigues é do Grupo Espírita Reencontro de Mauá/SP
Dicas para evitar interpretações equivocadas
- Valide o que se repete com coerência: continuidade da vida, responsabilidade moral, educação espiritual, assistência, lei de causa e efeito.
- Relativize a “casca” estética: em 1994 a cidade espiritual Nosso Lar vira um campo aberto; em 2010, uma cidade planejada com muralhas; nos quadrinhos, painéis sequenciais de acolhimento. Tudo são traduções artísticas.
- Observe o contexto de produção: locações e fotografia (1994), efeitos digitais (2010), linguagem gráfica (HQ) nascem de recursos e meios culturais, não de verdades absolutas sobre o espiritual.