O desafio de atender minorias na Assistência Espiritual

Os sofrimentos do mundo são muitos e as condições humanas ressurgem com novas dimensões e ganham mais visibilidade com o acesso à informação. A maioria chega ao Espiritismo pela dor, geralmente, nos salões de Assistência Espiritual. Estamos preparados para lidar com todos que batem à nossa porta?
O Grupo Espírita Reencontro, da Regional ABC, notou um aumento da presença de assistidos de grupos minoritários. Reconhecendo a complexidade de questões de gênero e capacitismo, passou a promover um minicurso para preparar seus voluntários para atender as minorias.
Em dois encontros presenciais, são abordados temas críticos de inclusão e respeito na Assistência Espiritual, com foco em capacitismo e igualdade de gênero.
Deficiências: nem curandeiros, nem julgadores
A primeira parte do curso trata do capacitismo, explicando como abordar as questões de deficiência. Enfatiza a importância de reconhecer as deficiências como características físicas e não como determinantes da identidade de cada um, promovendo atitudes que valorizem o bem-estar e a inclusão.
A relação entre a religião e o capacitismo é complexa e muitas vezes problemática. Um dos pensamentos mais prejudiciais dentro do capacitismo é a ideia de que a deficiência deve ser superada ou corrigida. Na prática da fé, essa mentalidade pode levar as pessoas com deficiência a condicionar sua espiritualidade à busca pela “cura” física, em vez de focar no autoconhecimento e na evolução espiritual. Como trabalhadores da Assistência, devemos ter cuidado para não potencializar falsas concepções de cura.
Outro ponto sensível é a abordagem dos conceitos de causa e efeito com esse público. A doutrina espírita enfatiza a reencarnação e a evolução espiritual através das experiências terrenas, incluindo aquelas com deficiências físicas. Nem todas as condições humanas são aparentes e, muitas vezes, as explicações oferecidas de forma superficial na Assistência Espiritual atribuem as deficiências a punições de erros ou excessos de vidas passadas.
No entanto, é fundamental considerar o impacto dessas informações nas pessoas que buscam alívio para suas dores. Simplificar os conceitos da causa e efeito em uma Assistência Espiritual pode ser profundamente danoso e impactar negativamente as pessoas que procuram acolhimento em um centro espírita.
No Evangelho de João, capítulo 9, há uma narrativa significativa onde os discípulos perguntam a Jesus sobre a causa da cegueira de um homem, questionando se ele ou seus pais haviam pecado. Jesus responde que "nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para que se manifestassem nele as obras de Deus" (João 9:3).
Questões de gênero: acolhimento e empatia

A segunda parte do curso foca na igualdade de gênero, discutindo a disforia de gênero, a violência de gênero e a importância da empatia e respeito dentro da comunidade espírita para qualquer pessoa. O curso visa a sensibilizar os voluntários para criar um ambiente acolhedor e justo para todos, respeitando as particularidades e necessidades de cada pessoa.
Questões de gênero, especialmente envolvendo pessoas transgêneras, também exigem uma abordagem cuidadosa e compassiva dentro da Assistência Espiritual. O sofrimento decorrente da discrepância entre a identidade de gênero e o sexo biológico é uma condição complexa que requer apoio sensível e informado.
Autores espirituais como Joanna de Ângelis e André Luiz ("Após a Tempestade" e "Sexo e Destino") enfatizam a necessidade de carinho, respeito e dignificação dos espíritos encarnados em situações de conflitos. Eles mencionam que a alma reencarna em diversas condições, incluindo aquelas julgadas "anormais", para melhorar e aperfeiçoar-se, ressaltando que a classificação de anormalidade é uma limitação da humanidade encarnada.
À luz da imortalidade da alma, todos os espíritos são tratados com equidade pela lei divina. Assim, a igualdade de tratamento é um princípio fundamental que deve nortear a Assistência Espiritual. Como movimento espírita, é essencial que tanto o capacitismo quanto as questões de gênero sejam abordados de maneira renovada e mais humanizada.
A principal função da Assistência Espiritual deve ser a consolação e o apoio. É vital que os espíritas pensem o impacto de suas palavras e ações ao lidar com assistidos com questões de deficiência e disforia de gênero.
Ao acolher minorias com empatia e respeito, a Assistência Espiritual pode cumprir seu verdadeiro papel de consolar, apoiar e ajudar na evolução espiritual de todos os que batem à sua porta.
Thiago Rodrigues é do Grupo Espírita Reencontro, da Regional ABC
Depoimentos
“Desde pequena e com criação católica, percebi que muitas pessoas na igreja viam minha condição como algo a ser curado. A minha sorte foi gostar de ler. No Espiritismo encontrei muitas respostas, mas ainda no grupo espírita vejo pessoas que trazem as características punitivas do Catolicismo. Hoje, para mim, a espiritualidade é sobre conexão com algo maior, não sobre mudar quem eu sou fisicamente.”
— Eliana, voluntária da Assistência Espiritual que cresceu com mobilidade reduzida devido à poliomielite
“Me peguei acreditando que o que aconteceu comigo era um resgate de vidas passadas. No entanto, hoje vejo a complexidade da minha experiência, com as pessoas e fatos envolvidos e, principalmente, o meu crescimento espiritual. É mais útil ver a deficiência como uma oportunidade de aprender e evoluir, não como uma punição.”
— Elizeu, voluntário na Assistência Espiritual e tem a perna amputada
“Quando minha criança começou a expressar sua tristeza e vontade de deixar de viver, a situação mexeu profundamente comigo. A casa espírita foi o lugar onde encontrei algumas respostas, mas também enfrentei alguns desafios. Certa vez, participei de uma reunião do Grupo de Pais que a expositora não estava preparada para abordar o tema da transexualidade. De qualquer forma, agradeço a Deus por ter encontrado as pessoas certas e o amparo espiritual.”
— Andréia, mãe de uma pessoa trans e frequentadora da casa